terça-feira, 18 de janeiro de 2011

TORÇO - Do toré do goleiro aos artistas na arquibancada

Toda semana é a mesma coisa. Lá vão aqueles 10, 30, 60 mil seres estranhos, rumo a um mesmo templo. E que curioso: vestem todos uma roupa muito parecida, com cores similares. Entoam cantos muito alegres. Em suas mãos balançam gigantescas bandeiras com cores como as das roupas que usam e ao centro, exibe-se um imponente brasão. A cidade transforma-se. Parece festa. Parece caus. Aqueles que não vestem a roupa comum xingam, reclamam. Ouvem-se fogos. Muitas buzinas. Inúmeros jornalistas se deslocam para o templo.


Com arquitetura clássica de teatro grego, o espaço que recebe a imensa horda de felizes torcedores – sim, foi com este nome que ouvi alguém se referir a estes seres estranhos – tem suas singularidades. Cravado na urbanidade da cidade, exibe seus elementos rurais. Ora, se lá fora são quilômetros e quilômetros de asfalto aqui dentro, no centro de círculo ovalado, apresenta-se um imponente quadrado verde, exageradamente verde que brilha sob a luz do sol. É grama. É planta. É chão.

Acima, convocando a poesia de nossa bandeira, brilha um sol amarelo, pregado num azul infinito que escorre para o horizonte. Não há teto no templo que aos poucos começa a encher. Se chove, chove sobre nossas cabeças. Se anoitece, banha-nos a luz da lua. Os caminhos de acesso são como grandes serpentes tatuadas de gente. Uma serpente que se move malemolentemente. O ritmo de feira intensifica-se pelo comércio de bebidas, comidas e camisas como as que a maioria usa. Sentam-se nas arquibancadas, os seres estranhos. Ao quadrado verde, não têm acesso os animados torcedores. Mas, não parece que se incomodam. Alguns não concordam em ficar onde está a maioria, sentada. Trepam numa espécie de rede, muito alta, ereta e convicta que descobri mais adiante atender pelo nome de alambrado. Ali, mais tarde, alguns mais afoitos se pendurarão e gritarão, a um pobre coitado dentro do quadrado, nomes impublicáveis.

De repente, ouço gritos e aplausos, muitos aplausos. Uma legião de crianças uniformizadas entra segurando as mãos de adultos vestidos como elas. Soltam-se muitos balões coloridos. Num lado privilegiado da arquibancada, tocam tambores, lançam papel picado ao ar. Meu Deus! Uma grande bandeira surge onde antes era apenas gente. Engole todas aquelas pessoas que não sei para onde foram até que a bandeira se esvai novamente trazendo de volta os torcedores temporariamente desaparecidos.

Um homem simpático com cores diferentes do grupo que entrou agora e do grupo que havia entrado mais cedo, sem festa, coitados, ainda sob o som de vaias desconcertantes, conversa com outros dois que se posicionam com paninhos ajustados a uma grande vareta na mão. Ao centro do campo (campo, este espaço rural) conversa com um homem de cada camisa e lança a bola ao ar. Esta, elevada ao céu pela autoridade local, alinha-se ao sol entrando em contato com a força criadora. Do céu, ela volta pronta, sagrada. Ela é a vida do jogo e todo sentido agora está nos sentidos diversos que ela tomar. Sentido semiótico. Sentido direcional. Toda existência diz respeito a ela. Seu reino é o campo. Fora do campo, fora do jogo.

Um objetivo apenas. Introduzir o objeto sagrado no altar do opositor, do inimigo, do adversário. Para tanto, onze homens dividem-se na tarefa de avançar sobre o território alheio e defender o próprio. Um desses onze homens defende o altar. Um quadro. Um retângulo constituído de duas traves, um travessão e o chão. Em sua tridimensionalidade, avança para trás através de um grande véu de noiva que quando balança leva à loucura aqueles seres estranhos. Gritam GOL, os esganados. Abraçam-se homem com homem. Levantam insistentemente os braços. Pulam sem dar-se conta de que não são mais meninos. E como brilham seus olhos. Será que aquele ali está chorando?

E assim vai seguindo este longo encontro de mais de duas horas, onde se experimenta de tudo. Sair é entrar no corpo coletivo. Nada é pessoal. Tempo, ritmo, espaço. Tudo é um só. Tudo é coletivo. Não tem como fugir desta coletividade que se impõe. Segue a semana e a televisão, o rádio, a internet, os jornais, a revista, todos exibem fotos e comentam fatos daquele encontro. Todos unidos novamente, ainda que fisicamente distantes. Nova semana. Novo encontro. Sempre o mesmo ritual. Sempre uma nova experiência.

E que coisa curiosa, ao mesmo tempo tão simples e tão complexa pode ser esta que convoca multidões? Coisas de um tempo recente, esvaziado de sentido? Acho que não. Observe o que nos diz José Miguel Wisnik em Veneno Remédio, O Futebol e o Brasil.

O objetivo desta forma de ‘caçada recíproca’, muito mais crua que a do futebol, travada entre populações de aldeias vizinhas, consistiria em conduzir a bola para dentro do território do outro, até seu campanário, suponhamos (tratando, portanto de uma espécie de gol), ou de subtrair a bola do domínio do outro grupo e trazê-la vitoriosamente até seu próprio território, entronizando-a em sua própria igreja (ou em algum outro ponto marcado do próprio território) (WISNIK, 2008, p. 78)

Coisa de muito tempo. Coisa de antes da modernidade.

E segue:

Práticas tradicionais e assumidamente violentas são convertidas agora na representação de um ato a ser desfrutado pela sua capacidade de atingir clímax e relaxamento, de estender artificialmente a tensão da disputa até atingir seu desenlace catártico, e de se oferecer, assim, a uma espécie de contemplação estetizada. (Grifos meus.)(IDEM, 2008, p. 86)

É esta estetização da luta, da guerra, do ritual que me seduz. Aí reside meu princípio. Para tanto, não canso de convocar artistas que em suas obras ou em sua vida tratam do tema de modo simples, vivendo-o ou refletindo sobre ele. Das canções de Chico Buarque aos ensaios de Pier Paolo Pasolini, das crônicas e dramas de Nelson Rodrigues à minuciosa pesquisa do compositor e poeta José Miguel Wisnik, onde quer que eu busque vou encontrar referências que relacionam o futebol à experiência artística. Sobre a leitura feita por Pasolini a respeito do futebol, Wisnik explica:

O futebol era para ele (Pasolini) o terreno em que se dava o grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito um largo espectro da escala humana. (...) Por isso mesmo, afirmava que jogar futebol era um dos seus maiores prazeres, junto da literatura, do eros e do cinema, além de ser, como para Alberto Camus ou Eugenio Evtuchenko, um campo de aprendizado total, uma espécie de formação. (WISNIK, 2008, p. 15)

E para encerrar a participação, talvez excessiva de Wisnik, um pequeno trecho de suas próprias considerações sobre futebol e arte:

(...) Seria preciso entender que nele (no futebol) como nas artes e na música, o conteúdo está ali sem como se não estivesse: na ausência de significado, mas fazendo sentido e pondo em cena conteúdos conflitivos e catárticos que o transformam nesse vespeiro universal de congraçamento e violência. É pelo fato de lidar de maneira não verbal com o núcleo de violência que constitui as sociedades, a um tempo elaborando-o e expondo-o ao risco de trazê-lo à tona, que o futebol pôde se tornar o vínculo intrigante que atravessa todo tipo de fronteiras. (IDEM, 2008, P. 45)

Mas, se estes artistas, pensadores e questionadores da vida já perguntaram tanto e trouxeram algumas respostas, o que posso ainda querer buscar? Busco justamente experimentar olhar para o teatro como um lugar onde alguns princípios do futebol em algum tempo já estiveram presentes. Desconfio que nos concursos gregos de tragédia o espírito aproximava-se do que acontece hoje nos campeonatos de futebol e a existência dessa similaridade me intriga tanto quanto o desejo de compreender em que momento o teatro perdeu esta dimensão coletiva e popular.

Um importante aliado na tentativa de compreender em que momento se dá essa cisão entre arte e jogo, entre arte e povo, é o filósofo Johan Huizinga, na obra Homo Ludens – o jogo como elemento da cultura. Primeiro, ele organiza as aproximações entre o jogo, a arte e a vida. Uma dessas aproximações que ele propõe é sobre a ordem que se estabelece dentro do jogo, dentro da obra de arte. Uma ordem própria, paralela à ordem da vida, mas nem por isso mais frágil que ela. Também reflete sobre alguns dos elementos do jogo próprios da experiência estética.

(O jogo) Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta. [...] É talvez devido a essa afinidade profunda entre a ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. Talvez este fator estético seja idêntico aquele impulso de criar formas ordenadas que penetrem o jogo em todos os seus aspectos. As palavras que empregamos para designar seus elementos pertencem quase todos à estética. São as mesmas palavras com as quais procuramos descrever os efeitos da beleza: tensão, equilíbrio, compreensão, contraste, variação, solução, união a e desunião. O jogo lança sobre nós um feitiço: é ‘fascinante’, ‘cativante’. Está cheio das duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas: ritmo e harmonia. (HUIZUNGA, 2007, p.13)

Mais adiante, o próprio Huizinga reflete sobre como o elemento lúdico foi sendo deslocado dentro da produção artística, resistindo ainda, porém em lugar menos relevante. Para o autor, a individualização do processo artístico, transferindo o foco da experiência estética do fruidor para o produtor parece ser um dos grandes responsáveis pelo afastamento da arte do grande público.

[...] Através de um processo gradual que durou vários séculos, a arte foi perdendo sua função vital na sociedade, tornando-se cada vez mais uma ocupação autônoma própria de certos indivíduos chamados artistas. Um dos marcos desta emancipação foi a vitória do quadro emoldurado sobre o painel e o mural, e da gravura sobre a miniatura e a iluminura. No Renascimento, deu-se a idêntica passagem do social ao individual quando a função principal do arquiteto passou da construção de igrejas e palácios para a de residências particulares, das galerias magnificentes para os escritórios e dormitórios. A arte se tornou mais íntima e ao mesmo tempo mais isolada, dependendo de um só indivíduo e de seu gosto pessoal. E foi de maneira semelhante que a canção e a música de câmara, destinadas à satisfação de aspirações estéticas, pessoais, começou a dominar as formas artísticas de caráter mais público, tanto em importância quanto, muitas vezes, em intensidade de expressão. (HUIZINGA, 2007, p. 223)

Estas e tantas outras considerações sobre as semelhanças entre jogo e arte, entre futebol e teatro vão constituindo em mim uma compreensão cada vez mais estruturada, mas, que nem por isso me silencia, sobre os mistérios que cercam o futebol enquanto evento que se dá à fruição, à apreciação e ao jogo, como um importante modo de convivência. Experiências como a do jogo e da arte dizem respeito, em última instância – ou em primeira talvez – ao fato de sermos um bicho coletivo. É intrigante essa possibilidade de não apenas nos encontrarmos com o outro, mas, mais do que isso, nos encontrarmos no outro.

De volta ao nosso templo de grama e gente, do lado de cá ou de cá do alambrado, somos todos jogadores. O que encanta ainda no futebol é a radicalização da presença ativa do espectador. O torcedor não é apenas um observador da cena, e mesmo em sendo jamais sua atuação como observador será passiva. Mesmo o torcedor calado sentado, quieto será parte de um todo que age, constrói e que cria o instante do futebol. Soprado o apito, dissipada a multidão, apagados os holofotes, resta o sentimento de pertencimento e identidade impresso na pele por uma experiência coletiva de retorno aos princípios mais fundamentais da existência.

“Hora de ir embora quando o corpo quer ficar. Toda alma de artista quer partir. Arte de deixar algum lugar quando não se tem pra onde ir.” Chico Buarque.

Em noite de jogo, a certeza – pela alegria da vitória ou pelo amargo da derrota – de que somos mais do que aquilo que desconfiamos no cotidiano embotado que nos engole. Depois da contundência de uma partida de futebol, jamais nos sentiremos sozinhos, mesmo quando enraizados na solidão de nossas mazelas pessoais, quando partimos, solitários, para o terceiro tempo (ou terceiro ato) de nosso jogo diário.

A propósito, aquele ser estranho, lá do começo do texto, eu o reconheci. Aquele ser estranho sou eu.

“_ Vasssssssssssssco! (Tuninho cai de joelhos. Mergulha o rosto nas duas mãos. Soluça como o mais solitário dos homens) Fim do terceiro e último ato.” (RODRIGUES, 1993, p. 779).

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